quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Pé morno

Oito meses de internato e eu sou notoriamente conhecida como doutoranda pé-frio. Pego casos complicados e os pacientes tendem a agravar na minha mão (mentira, alguns já peguei grave).
Meu primeiro paciente na enfermaria (onde a medicina acontece de verdade) de pediatria foi um rapazinho de 2 pouco mais de 3 meses. A queixa da mãe foi que ele estava "amarelo" desde um mês de vida. Depois de muita investigação, foi diagnosticado com uma atresia de vias biliares, condição clínica que lesava o fígado dele de forma irreversível. A cura era uma cirurgia, mas pra ter sucesso, ela tinha que ser feita até 1 mês de vida. Ele iria entrar na lista de transplante de fígado.
A segunda, na mesma enfermaria foi uma mocinha de 9 meses. O parto dela tinha sido complicado no interior da Paraíba e ela ficou sem oxigenação no peri-parto, o levou a uma lesão também irreversível no cérebro (encefalopatia crônica não-progressiva hipoxico-isquêmica). Resumindo, ela era uma criança especial e gastava muita energia pra fazer tudo, inclusive se alimentar. Ela era desnutrida grave. Mantinha o mesmo peso do nascimento (crianças sem problemas de saúde dobram o peso do nascimento aos 5 meses e triplicam aos 12). Por isso, as infecções que já são com sintomas inespecíficos em pediatria, ficam mais difícies de diagnosticar. Ela adquiriu uma e o coração dela não aguentou e parou.
Mudei de enfermaria, e um outro paciente tinha nascido com problemas no coração. Muitos. Em termos médicos, é uma cardiopatia complexa. Ele era um bebê azul. Tava internado pra uma cirurgia até tranquila da cardiologia, assemelhada com um cateterismo, mas numa comunicação que, em indivíduos saudáveis se fecha ao nascimento, mas no meu paciente, precisava ficar aberta pra mantê-lo vivo. A cirurgia era pra ter sido feita ao nascimento, ele já tinha mais de um mês e ainda estava esperando por uma vaga na cardiologia pra fazer a cirurgia, que apesar de ser grave, não era uma urgência.
Mudei de enfermaria novamente, e conheci uma mocinha de 6 meses, que tava com dificuldades pra respirar. Parecia muito uma pneumonia (até comum na infância), mas tinha algo no coração dela de errado. No fim das contas, mesmo com os antibióticos corretos, ela piorou do quadro respiratório. Sai numa segunda feira com ela quase sem precisar de oxigênio complementar e voltei na terça com ela numa insuficiência respiratória grave. Ela parou duas vezes na mesma manhã na minha frente. Precisava de uma uti e não tinha vaga. Parou a terceira vez à noite e não foi revertida.
Na mesma segunda, minha outra paciente da mesma enfermaria de 10 dias de vida, tinha um problema pra coagular o sangue e estava em observação, aguardando os exames melhorarem pra ir pra casa. Cheguei na terça e ela estava com oxigênio porque tinha ficado "roxinha" durante a noite. O médico de plantão observou que ela fazia pausas na respiração. Durante a manhã, entre uma parada e outra da minha outra paciente, flagrei episódios convulsivos nela. Primeiro pensamento: o cérebro dela tá sangrando. Solicitei uma tomografia de urgência e ultrassom às 10 da manhã. Durante avaliação da tarde, não tínhamos mais dúvidas de que ela sangrava no cérebro. A tomografia agora era pra definir o grau das lesões e se cirurgia ainda era uma opção. No dia seguinte, cheguei com a esperança de ela ter sido transferida pra um serviço especialista em neurocirurgia, mas ela estava lá, com pausas na respiração cada vez maiores. A tomografia mostrou grande parte do cérebro já lesada. Não tinha mais o que fazer. Durante a visita, eu vi ela ter uma parada cardiaca e depois de 40 minutos de reanimação, sem resposta, a gente deixou ela ir. Foi a semana mais pesada desde janeiro. Não esquecerei mais aquela terça 13 de maio.
Mudei de setor. Pacientes maiores e com doenças mais crônicas. No final do rodízio já, na última semana, depois do feriado de São João, fui conhecer minha nova paciente pra dar alta, ela ia pra casa e acompanhar no ambulatório. Mais uma cardiopata. A mãe estava desesperada porque a filha estava "estranha". Em questão de minutos, ela começou a convulsionar e teve uma parada cardíaca. Meu perceptor acha que ela teve um derrame ou um infarto.
Sai da pediatria achando que a gineco/obstetrícia seria mais feliz. Afinal, lá nascem os bebês. É um lugar de vida, não de morte. Minha primeira paciente da enfermaria era uma paciente terminal, com um cancer não-se-sabe-de-quê que tomava parte da barriga dela e já estava espalhado pro fígado, intestino e ossos da bacia. Ela não respondia mais, e passava o tempo quase todo dormindo, por conta dos remédios pra dor. A família não queria levá-la pra casa e o centro de cuidados paliativos não aceitava ela por falta de um diagnóstico (cancer apenas não servia, tinha que saber de onde). Ela faleceu semana passada.
Uma das pacientes atuais foi retirar um tumor de ovário (na vida real, a cirurgia de tumor de ovário é bem radical, tira-se tudo, útero e ovários e tudo mais o que se achar comprometido). A cirurgia tinha sido considerada um sucesso. Mas ontem foi visto que ela tava com uma insuficiÊncia renal aguda e teve que ser re-operada e tá na uti.

Claro que eu tive casos tranquilos. Todos os outros que eu mandei pra casa, com a "vida resolvida" como a gente diz. Alguns colegas me dizem "coitada de tu". Mas quer saber, aprendi tanto com cada um dos meus pacientes graves, intelectual e mentalmente. Aprendi medicina e aprendi que lidar com a fragilidade da vida é bem cruel. Em franco processo de aprender que a morte faz parte da vida. E que, o que não deu pra ser feito com um paciente que eu perdi, pode me ser útil pra salvar um futuro paciente lá na frente.

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